AGÊNCIA EINSTEIN
Embora a maternidade seja frequentemente idealizada como um processo natural e instintivo, a amamentação pode se revelar um dos primeiros grandes desafios, sendo muitas vezes complexa e até mesmo dolorosa. Em alguns casos, a frenectomia — cirurgia para corrigir a “língua presa” em recém-nascidos — pode ser um recurso para que o bebê consiga mamar melhor sem causar fissuras nas mamas.
No entanto, um relatório recente da Academia Americana de Pediatria (AAP), dos Estados Unidos, alerta que a popularização desse procedimento como uma solução para problemas de amamentação pode estar levando a intervenções desnecessárias, com eventuais riscos para a saúde dos pequenos.
Segundo a entidade, a realização de frenectomias nos Estados Unidos aumentou dez vezes entre 1997 e 2012 e dobrou entre 2012 e 2014, saltando de cerca de 10 mil para 20 mil procedimentos.
No Brasil, um crescimento significativo também foi registrado: em 2021, foram realizadas 28.777 frenectomias, número que subiu para 47.619 em 2023, um aumento de 65,47%, de acordo com o Ministério da Saúde. Vale ressaltar que esses números incluem apenas a rede pública, podendo ser ainda maiores quando considerados os procedimentos realizados no setor privado.
De acordo com a cirurgiã-dentista Aline Moreno, coordenadora e professora do curso Odontologia: da Gestação à Primeira Infância, do Ensino Einstein, o aumento de mães interessadas na realização do procedimento para facilitar o processo de amamentação foi observado no dia a dia da prática clínica.
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Na opinião da especialista, esse movimento pode estar associado à divulgação da frenectomia nas redes sociais, além da realização da técnica por filhos de pessoas famosas. “O início da maternidade é um período de muita fragilidade e pressão.
Se a mãe enfrenta dificuldades de amamentação, como dores e pega ruim do bebê, e ouve falar de algo supostamente milagroso, é natural haver um interesse”, analisa Aline Moreno, que é especialista em odontopediatria e aleitamento materno.
Para realizar o procedimento, segundo a especialista, o primeiro passo é realizar o “teste da linguinha”. O exame, obrigatório desde 2014, identifica ainda na maternidade se há presença de anquiloglossia, condição popularmente conhecida como “língua presa” que ocorre quando o frênulo, faixa de tecido que conecta a língua ao assoalho da boca, é mais curta ou espessa do que o normal, restringindo os movimentos da língua.
Caso a condição seja identificada, o bebê é encaminhado para um especialista, que vai verificar se há dificuldade de amamentação e se o problema está, de fato, relacionado à anatomia lingual da criança.
Quando a frenectomia é realmente necessária?
Segundo a médica otorrinolaringologista Renata Di Francesco, presidente do Departamento Científico de Otorrinolaringologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), não existem critérios diagnósticos estabelecidos e obrigatórios para determinar a necessidade de frenectomia para melhorar a amamentação — ponto ressaltado pela AAP como uma das preocupações e possíveis explicações para a realização de intervenções desnecessárias.
O que geralmente é feito, segundo Di Francesco, é pesar o bebê antes e depois da amamentação para avaliar se a quantidade de leite materno ingerida é adequada para o seu tamanho. Se houver sinais de desnutrição, diversas causas são investigadas, e a “língua presa” é apenas uma delas.
Nesse contexto, é essencial considerar fatores como o formato do seio da mãe, se a lactante já passou por cirurgias nas mamas, a existência de uma rede de apoio para ajudar no processo — especialmente para mães de primeira viagem —, a posição utilizada durante a amamentação e as características do bebê (os muito pequenos ou prematuros, por exemplo, podem ter dificuldades naturais de coordenação).
“Após avaliar todos esses aspectos e garantir que o manejo está adequado, e ainda assim o bebê estiver apresentando dificuldades para mamar, então pode ser válido cogitar a frenectomia”, ressalta a médica. Nesses casos, a intervenção é importante para assegurar uma boa nutrição do pequeno.
Outro fator relevante é o uso de mamadeiras e chupetas, especialmente nos primeiros dias de vida. Aline Moreno explica que o movimento que o bebê realiza ao usar bicos artificiais é diferente do movimento feito durante a amamentação.
“Muitas pessoas acreditam que esses objetos podem auxiliar, mas, na realidade, eles acabam sendo inimigos da amamentação”, afirma a dentista. “Com mamadeiras e chupetas, o bebê faz um movimento de sucção, que envolve apertar, enquanto na amamentação o movimento é muito mais complexo. Se os bicos artificiais são introduzidos logo no início, isso pode confundir o bebê e causar um desmame precoce.”
Para Renata Di Francesco, há uma romantização comum em torno do processo de amamentação, o que muitas vezes transmite a falsa impressão de ser algo simples. No entanto, essa experiência é única para cada mãe e pode ser mais complexa e dolorosa para algumas do que para outras. Nessas situações, as mulheres podem sentir que algo está errado quando, na verdade, é uma parte comum do ato de amamentar.
Pequenos ajustes, como a mudança de posição durante a amamentação, podem melhorar essa experiência. “É um processo de adaptação que, ao ser ajustado pela interação entre mãe e filho, pode se tornar prazeroso tanto para o bebê quanto para a mãe”, destaca.
A Academia Americana de Pediatria reforça, porém, que a dor não deve ser o único motivo para a realização da frenectomia em bebês. “A dor no mamilo, por si só, é um indicador insuficiente, pois entre 34% e 96% das mães que amamentam sentem dor nos mamilos no período imediatamente após o parto”, pontua a entidade em seu relatório.
“O momento e a persistência dos sintomas podem ser fatores importantes, já que a maioria das dores nos mamilos atinge seu pico cerca de três dias após o parto e diminui para níveis leves para a maioria das mulheres dentro de sete a dez dias.”
Do déficit de informação aos riscos
A frenectomia é feita em consultório e pode ser realizada por cirurgiões-dentistas, pediatras e otorrinolaringologistas, sem uma idade específica para a intervenção. O procedimento pode se dar de duas formas: com tesoura cirúrgica ou com laser.
Além de ser indicada para melhorar a amamentação quando necessário, a frenectomia também pode ser recomendada para resolver problemas relacionados à mobilidade da língua, como dificuldades na fala e na pronúncia. “Não há estudos que comprovem a superioridade de uma técnica em relação à outra. A escolha do método geralmente depende da experiência do profissional com cada abordagem”, explica a cirurgiã-dentista.
Embora seja considerada uma cirurgia simples, como qualquer procedimento cirúrgico, ela não está isenta de riscos. Complicações como dor pós-operatória intensa, dificuldades alimentares e até aversão à comida podem acontecer.
Além disso, existe o risco de sangramentos e, em casos mais graves, de hemorragia. “Não é só um ‘pique’ na língua, como muitos dizem. Se, por exemplo, a criança se mover durante o procedimento e o controle do sangramento não for adequado, pode ocorrer uma perda excessiva de sangue”, alerta a médica da SBP. “Por isso, é importante ponderar os riscos e benefícios e questionar a real necessidade da cirurgia, além de buscar por profissionais com experiência nesse tipo de intervenção.”
Para os especialistas da AAP, uma abordagem multidisciplinar, que envolva a avaliação e a comunicação entre profissionais de diferentes áreas, como especialistas em lactação, cirurgiões e pediatrias, pode ajudar a garantir que as cirurgias sejam baseadas em diagnósticos precisos.
Na visão de Aline Moreno, isso pode ser uma dificuldade no Brasil, já que a amamentação ainda é um tema pouco discutido na formação profissional por aqui.
“Existe um déficit de informação entre os profissionais, o que acaba influenciando na conduta. Muitas vezes, as mães chegam com um diagnóstico de ‘língua presa’ e pronto. Por ser um procedimento simples, realizado em consultório, o profissional pode adotar a postura de ‘vamos ver se resolve’, o que não vai acontecer se houver outros fatores envolvidos”, destaca. “A batalha hoje em dia é para que a gente consiga capacitar mais profissionais, especialmente os da atenção primária, para garantir que esse tipo de problema não seja enfrentado de maneira tão intervencionista.”